Genômica Comparativa - A Contribuição da Raça Dobermann

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O cão foi provavelmente a primeira espécie domesticada pelo homem. A grande diversidade fenotípica evidenciada pelas diferentes raças caninas levou Darwin a concluir que todas as variedades de raças não poderiam ter origem num único antepassado. Entretanto, dados recentes demonstram que todas as raças caninas derivam do lobo cinzento. 

A interessante história evolutiva da variação entre as raças demonstra a ocorrência de dois episódios de estrangulamento genético. O primeiro está associado aos primórdios da domesticação dos cães (mais de 10 000 anos), onde a seleção realizada pelo homem se concentrava no desenvolvimento de características funcionais para o seu próprio benefício (caça, pastoreio e proteção do rebanho). O segundo estrangulamento é mais recente. Remonta a era vitoriana onde o desenvolvimento de exposições caninas e o surgimento dos livros de registro genealógico foram responsáveis pela formação das raças puras. Essas se baseavam na aparência e eram resultantes, na maioria dos casos, de cruzamentos consangüíneos de tipos existentes e da seleção de indivíduos com características estruturais ou comportamentais particularmente desejáveis. 

A maioria das raças caninas tem a sua origem em um número reduzido de cães fundadores. A elaboração de registros de restritivos de origens impediu a incorporação de novas variantes genéticas e, fixou as respectivas opções genéticas dentro das raças. Perdeu-se assim a variação genética e aumentaram os desvios genéticos. No tocante aos genes que controlam as características que definem o padrão de cada raça, é provável que reste pouca ou mesmo nenhuma variação genética. 

A redução do nível de variabilidade do DNA e as características singulares da população canina despertaram o interesse da comunidade cientifica. O cão foi então o primeiro mamífero não roedor a completar o seqüenciamento do genoma (2004) e a sua genética molecular percorreu um longo caminho num período de tempo relativamente curto. 

Os cães têm composição cromossômica complexa. Possui elevado número de cromossomas (2N=78) dificilmente diferenciáveis entre si e 20.000 genes. Comparando-se os dados atuais do genoma do homem, do rato e do cão, descobriu-se que o genoma humano é muito mais parecido com o do cão do que com o do rato. O ser humano e o cão partilham cerca de 650 milhões de pares de base de ADN, onde estão incluídos fragmentos de genes homólogos com a mesma função. Estes estudos colaborativos e comparativos entre medicina veterinária e medicina humana têm acelerado a taxa de descoberta e a extensão dos benefícios das pesquisas genéticas. Muitas das doenças genéticas são similares em cães e humanos tornando o cão um modelo biológico importante para o estudo das doenças genéticas e seu tratamento no homem e outros animais. 

Cada raça é capaz de ajudar a elucidar as combinações de genes e fatores ambientais que causam as doenças e, a mesma mutação patológica pode ocorrer no homem, em outros animais e em várias raças distintas. Cães da raça Dobermann têm representado um papel importante para pesquisa genômica comparativa, em especial na pesquisa das seguintes patologias: 

Sucção do Flanco - A sucção do flanco é um distúrbio compulsivo, observado exclusivamente em cães da raça Dobermann. Em 2010, pesquisadores estudando 94 dobermans que sugavam o flanco ou seu cobertor durante horas, descobriram que esses cães compartilhavam um gene. Eles também estudaram os pedigrees de todos os cães à procura de padrões complexos de herança genética e identificaram um local no cromossomo canino 7 que contém o gene CDH2 (Caderina 2)*. Estima-se que entre 2,5% e 8% da população humana seja afetada por transtornos obsessivo-compulsivos e a descoberta traz grandes implicações para o estudo dos distúrbios compulsivos em humanos e animais. A caderina também foi recentemente associada ao autismo, tornando a raça de fundamental importância nas pesquisas desse preocupante distúrbio. 

Narcolepsia - É um transtorno do sono que acomete o Dobermann e os humanos. Pesquisadores da Universidade de Stanford descobriram no DNA de dobermanns a mutação genética responsável pela doença. A narcolepsia canina está associada ao gene autossômico Canarc-1 de penetrância incompleta. O estudo deste modelo animal é importante para a compreensão da narcolepsia humana, devido à semelhança na sintomatologia e no tratamento.

Tireoidite Autoimune (Hipotiroidismo) - Associado com 3 genes do Complexo de Histocompatibilidade Maior (CHM) encontrado até agora somente na raça Dobermann e no Labrador. A Tiroidite Autoimune dos Dobermans é semelhante à Tireoidite de Hashimoto do homem e fundamental para o esclarecimento dos mecanismos que desencadeiam as doenças auto-imunes no homem e em outros animais.

Hepatite Crônica Ativa - É um tipo de hepatite onde existe aumento da concentração hepática de cobre e acomete predominantemente fêmeas adultas. Sinais clínicos comuns incluem poliúria/polidipsia, perda de peso, anorexia e ascite. Muitos animais morrem após poucos meses do inicio. São susceptíveis Dobermans com homozigose em 3 possíveis genes do CHM. O tipo de lesão encontrada nos hepatócitos sugere uma natureza autoimune. A presença de alguns heterodimeros e alelos parecem conferir proteção contra a doença. O estudo desses fatores de proteção se converte em importante ferramenta na terapêutica e na engenharia genética.

Câncer - Os Dobermans podem revelar muito sobre o câncer em humanos, em parte porque tendem a sofrer os mesmos tipos de tumor. A forma mais freqüentemente diagnosticada de Linfoma que afeta os Dobermans, mimetiza o Linfoma não-Hodgkin de células B dos humanos. O Osteossarcoma lembra muito o câncer ósseo que atinge adolescentes humanos tanto por sua localização como por sua agressividade. Ao microscópio, as células cancerosas de um adolescente com Osteossarcoma são indistinguíveis das células neoplásicas de um Dobermann. São inúmeros os exemplos (câncer de bexiga, tumores testiculares, etc), mas a colaboração mais importante da raça na oncologia comparada será provavelmente fornecida pelas pesquisas genéticas do Melanoma Maligno. A constatação de que dado gene esteja envolvido em algum tipo de câncer desenvolvido pelos cães permitirá que os investigadores determinem, se e como, o mesmo gene opera nos cânceres humanos.

Doença de von Willebrand Tipo 1 - A mutação responsável pela Doença de von Willebrand de Tipo I, identificada em primeira instância no Doberman Pinscher, foi subseqüentemente identificada em pelo menos mais oito raças caninas. A freqüência da mutação varia bastante em raças distintas. Herança autossômica recessiva.

Cardiomiopatia Dilatada (CMD) - A CMD leva a morte súbita ou a insuficiência cardíaca congestiva. Alta prevalência na raça e presença de muitas anormalidades secundárias do miocárdio. Uma investigação preliminar concluiu que as expressões genéticas envolvidas na produção de energia (celular), na sinalização, comunicação e estrutura celular, estão reprimidas em cães com CMD. Em contrapartida, os genes associados à defesa celular e à resposta ao stress apresentavam resposta aumentada na população doente. Herança autossômica dominante com expressividade variável e penetrância incompleta. Pode estar associada à deleção da troponina T cardiaca. Prevalência cumulativa nos cães europeus acima de 50%**.

Instabilidade Cervical Caudal (Wobbler syndrome) - Má formação de vértebras cervicais em cães de meia idade. A área do canal vertebral e da medula espinhal é menor e o disco intervertebral maior nos cães afetados. Existe uma associação variável de hipertrofia do ligamento da nuca e má formação do corpo da vértebra cervical. A compressão caudal crônica da medula espinhal cervical acarreta uma paraparesia de inicio insidioso que progride à tetraparesia. Modo de herança desconhecido. Estudos de identificação dos genes em andamento. 

Imaginemos, num futuro não muito distante, uma criança autista, ou se recuperando de um câncer, brincando descontraidamente com outras crianças e seu cão Dobermann. Eles nem imaginam o quanto a raça contribuiu para essa conquista. 

Autora: Maria Ignez Carvalho Ferreira
Professora adjunta aposentada do Departamento de Medicina e Cirurgia
Instituto de Veterinária - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
CRMV RJ 1.417.

Leitura complementar:

* A Canine Chromosome 7 Locus Confers Compulsive Disorder Susceptibility. Nicholas H. Dodman e colaboradores. Molecular Psychiatry 2010 Tufts University, USA. 

** Prevalence of dilated cardiomyopathy in Doberman Pinschers in various age groups. Wess G, e colaboradores J Vet Intern Med. 2010, Ludwig Maximilians University, Munich, Germany. 

Genetic predisposition to adverse drug events in dogs. Margo Karriker, 2007. 

Genetic screening in dogs. Matthew Binns, 2007. 

Nutrient-gene interactions: application to pet nutrition and health. Brittany Vester and Kelly Swanson, 2007 

From wolf to dog: visible phenotypical diversity of dog breeds. Bernard Denis, 2007.

The long history of man-dog coexistence. Carles Vila, 2005, Uppsala University, Suecia. 

Genetic Counseling for Veterinarians. Lowell Ackerman, 2005, Tufts University, USA.