O mito das “cirurgias estéticas” em cães.

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Recente matéria, veiculada na mídia, sobre a regulamentação de alguns procedimentos cirúrgicos em animais, trouxe à tona um tema bastante polêmico: O mito sobre as chamadas “cirurgias estéticas” em cães. 

Como médica veterinária, professora universitária, criadora e simpatizante dos movimentos de proteção animal, não posso deixar de me preocupar com as conseqüências para o bem estar animal da resolução 877 do Conselho Federal de Medicina Veterinária.

Considero que a colocação em prática desta resolução, sem uma avaliação mais profunda de suas implicações futuras, ao invés de estimular princípios básicos da profissão de Médico Veterinário, só estimulará uma atuação amadora e não ética.

A ação restritiva imposta aos médicos veterinários, credenciados e legalizados, invariavelmente acarretará a proliferação do charlatanismo.

É preciso enfatizar que a conchectomia (cirurgia de orelha) e a caudectomia (corte da cauda), realizadas dentro de técnicas cirúrgicas adequadas e por profissionais competentes, não podem ser consideradas cirurgias desnecessárias, estéticas ou “mutilantes ”. São cirurgias eletivas, atendendo perfeitamente às necessidades funcionais e zootécnicas para as quais as raças caninas, que dela se utilizam, foram desenvolvidas. Realizadas por pessoas não credenciadas, constituem um risco enorme ao bem estar animal.

A tradição de se rotular estas cirurgias como “estéticas” ou “mutilantes” foi adquirida em função do desconhecimento de alguns princípios básicos que tentaremos esclarecer.


1) Biologia

O cão doméstico (Canis lupus familiaris) é uma variedade ou sub-raça do lobo (Canis lupus) pertencem a classe Mammalia (1). Na maioria das vezes não nos damos conta que uma das principais características desta classe é a presença de meato auditivo longo e aurículas externas grandes, móveis e em concha. Essas características dos mamíferos térreos contribuem para o aumento da acuidade auditiva. Além disso, a aurícula ajuda a determinar a direção do som e, em conjunto com um meato auditivo longo, concentra sons oriundos de uma área relativamente grande. Nenhum mamífero térreo, exceto as variedades ou sub-raças dos animais domésticos desenvolvidas pelo homem, possui o meato auditivo encoberto pela aurícula. A sensibilidade auditiva de um mamífero terrestre pode ser reduzida se as orelhas são totalmente removidas ou quando algum detalhe anatômico dificulta a penetração do som no conduto auditivo.

2) História

Desde a pré-história os homens primitivos representavam os canídeos com as orelhas eretas. No Brasil, o homem pré-histórico, que provavelmente habitou o cerrado a partir de 15 mil anos atrás, deixou inscrições na forma de figuras gravadas ou pintadas na rocha (figura 1). Abundantes e visualmente impactantes, os zoomorfos (representações de animais) se destacam nos sítios arqueológicos do Brasil central (2). 

No norte da Europa, descobriu-se "cães das turfeiras" que datam de 10.000 a.C. e cujo estudo permitiu concluir que esta variedade tinha a aparência de um Spitz do Norte, de orelhas curtas e retas, pêlo longo e cauda enroscada por cima dos quartos traseiros. 

No Egito era freqüente a representação de cães assemelhados a galgos de orelhas eretas, nas pinturas murais ou nos baixos-relevos. 

Os gregos foram os primeiros a adotarem os cães como animais de companhia. Em vasos pintados e colunas da época clássica, aparecem cães de caça de orelhas finas e pontudas e focinho afilado.


Num dos mais célebres mosaicos de Pompéia (figura 2), aparece a representação de um cão de orelhas eretas, com uma expressiva legenda que aparece destacada no mosaico: "Cuidado com o cão" (Cave canem) (3). 

3) Evolução e função zootécnica.

Ao longo dos séculos, através da domesticação, o ser humano realizou uma seleção artificial dos indivíduos que melhor atendiam aos seus objetivos. O resultado foi uma grande variedade de raças caninas.

Partindo do princípio que os cães primitivos tinham o pavilhão auricular ereto, o desenvolvimento de raças caninas de orelhas pendentes surgiu por intermédio de seleção artificial, talvez na intenção diminuir a audição dos cães para a caça. Esta seleção artificial resultou em alterações anatômicas de conformação do canal auditivo e orelhas pendentes, principais fatores predisponentes proliferação de microorganismos, desenvolvimento de otites e surdez (4). 

Há de se notar que a conchectomia não é praticada nos cães cuja função zootécnica é a caça, ficando praticamente restrita aos cães de proteção que necessitam de maior acuidade auditiva na realização da função para o qual foi selecionado. 

A conchectomia realizada dentro de técnicas éticas, não impede de maneira alguma a capacidade de expressão do comportamento natural da espécie, muito pelo contrário. Cortando-se parcialmente a aurícula dos cães de proteção, os movimentos de ereção, abaixamento e rotação das orelhas ficam facilitados, dando aos cães melhores condições de espantar insetos e se proteger de mordida de outros cães. Tal procedimento também facilita a circulação de ar no conduto auditivo, diminui a umidade local e melhora a percepção dos sons e acuidade auditiva, diminuindo as chances de proliferação de microorganismos que conduzem à otite.

Quanto à caudectomia ela é realizada nos cães de caça, com a finalidade de evitar acidentes e está na dependência do tipo de terreno onde o animal trabalha e da forma como o cão porta a cauda. Nos cães de proteção, a caudectomia só é realizada nas raças que portam a cauda acima da linha do dorso. Seu o objetivo é diminuir os pontos de apoio para quem pretenda neutralizar a ação do cão. Todas as raças nas quais a caudectomia é realizada, têm como característica o porte da cauda acima da linha do dorso e mobilidade acentuada. Estas características predispõem os animais de trabalho ao desenvolvimento de ferimentos freqüentes e neurites, o que invariavelmente conduzem a uma amputação da cauda em idade avançada.

4) Bem estar animal.

Movimentos contra o corte da cauda e da orelha em cães são comuns no mundo inteiro. Muitos alegam, por desconhecimento, que se trata de procedimento mutilante, puramente estético e desnecessário. 


Como veterinária não posso concordar integralmente. Concordo que uma conchectomia radical (com interferência em músculos e nervos) possa ser prejudicial e considerada mutilante (figura 3). Entretanto, a conchectomia e a caudectomia, realizadas dentro de técnicas cirúrgicas adequadas e por profissionais competentes, não podem ser consideradas cirurgias desnecessárias, estéticas ou mutilantes. São cirurgias eletivas, atendendo perfeitamente às necessidades funcionais e zootécnicas para as quais as raças caninas, que dela se utilizam, foram desenvolvidas. Realizadas por pessoas não credenciadas ou com técnicas radicais, é um risco enorme ao bem estar animal.


Como criadora há várias décadas e proprietária de cães, tanto com orelhas cortadas (figura 4) quanto com orelhas integras (figura 5), posso afirmar que os cães com orelhas cortadas têm maior acuidade auditiva, menor tendência a desenvolver otite e a chacoalhar as orelhas. Por sua vez os cães com orelhas íntegras têm menor predisposição ao ataque de moscas sugadoras. Quanto à estética, não vejo diferença alguma. Há algum tempo já optei por deixá-las integras, mas o proprietário tem direito ao livre arbítrio.


Como protetora, pude observar que os filhotes das raças que são submetidos à conchectomia, realizadas por veterinários, recebem mais atenção de seus proprietários na principal fase de desenvolvimento de sua personalidade, são tratados e vacinados adequadamente, raramente são abandonados e em caso de necessidade, são mais facilmente recolocados em lares adotivos. O mesmo não acontece com os filhotes que são submetidos a cirurgias mutilantes em “rinhas de cães” e locais assemelhados.

Como educadora, não posso deixar de me preocupar com as conseqüências da resolução 877 do CFMV. A resolução do Conselho tem efeito restritivo apenas para o médico veterinário e não sobre pessoas desabilitadas e inescrupulosas, reais responsáveis pelos prejuízos ao bem estar animal.


Maria Ignez Carvalho Ferreira
Professora adjunta aposentada do Departamento de Medicina e Cirurgia
Instituto de Veterinária
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
CRMV RJ 1.417.